Entusiasta do que prevê o Sistema Único de Saúde (SUS), incentivadora das ações do Ministério Público e crítica de movimentos grevistas. Para a advogada Sueli Gandolfi Dallari, uma das maiores especialistas em Direito Sanitário - área que organiza as normas e diretrizes da saúde no país -, um grande passo no entendimento da saúde como direito fundamental foi dado com a Constituição de 1988, mas ainda é preciso avançar mais. A população deve cobrar, participar e, principalmente, conhecer como funciona o sistema que, para seus usuários, ainda deixa um abismo entre discurso e realidade.
Mestre e doutora em saúde pública pela Universidade de São Paulo e pós-doutorada em direito médico e saúde pública pela Université de Paris XII (França) e Columbia University (EUA), Sueli Dallari atualmente é professora titular da Universidade de São Paulo.
Confira entrevista cedida recentemente e com exclusividade ao DIÁRIO:
P: Como a Constituição brasileira trata o direito à saúde?
R: Uma coisa que aconteceu no mundo, no século XX, foi a percepção de que o direito tinha se afastado da justiça. Então se perguntou, quem sabe o que é justo? O povo, claro. Então, temos que ter o povo participando da ideia. Aí se cria a ideia do estado democrático de direito, que é o que nós somos, mas não somos sozinhos. Todos os estados contemporâneos que reformaram suas constituições são estados democráticos de direito, porque há a percepção de que temos que fazer algo mais justo. Essa introdução toda é para dizer que o direito da saúde ficou uma explicação prática muito boa do que está escrito na Constituição brasileira, onde se lê “saúde é um direito de todos que deve ser garantido pelo estado com políticas econômicas e sociais que tenham o objetivo de reduzir ou eliminar os riscos de doença e de cuidar da saúde”. E ainda continua: “Todas as ações de saúde têm que contar com a participação do povo”. Essa é a diferença fundamental do que ocorreu em relação à saúde na Constituição. Ela é vista com um conceito positivo. O direito à saúde está muito bem definido como algo positivo que exige que o povo diga o que é saúde. Ninguém pode fazer isso do seu gabinete. É preciso que quem vive a realidade explique o que é saúde. A definição de saúde dá trabalho e tem que ser feita na comunidade, com a participação popular. E a constituição prevê tudo isso.
P: E o direito sanitário, seria exatamente o quê?
R: O direito sanitário é o direito que cuida da organização social, que se interessa pela saúde. Ele cuida das normas legais feitas pelo parlamento e pela administração, assim como das normas éticas, das questões de acesso à saúde - reconhecido como direito da humanidade, formalizado em 1948, mas sempre reconhecido como fundamental para vida humana.
P: E o que cabe ao poder público? Quais ações ele deve provir à sociedade?
R: A primeira, em termos de urgência hoje, é ouvir a sociedade e dar meios para que ela possa participar. Não adianta apenas ouvir. Por exemplo, você quer que seja construído um hospital em determinada região. Aí se discute, há acordos, análises até que um parlamentar faz uma proposta para que o recurso seja incluído no orçamento do município. E aí não acontece nada. Fica por isso mesmo. Porque a gente não consegue entender o orçamento. O prefeito vai dizer que não tinha dinheiro, mas como não tinha se constava no orçamento? Essas coisas a gente precisa tornar mais transparentes, senão o povo não vai cobrar. A peça chamada orçamento precisa ser mais discutida, o tempo todo, em todo lugar. Hoje a lei obriga que existam conselhos de saúde, mas esses conselhos têm que ter informação também, a imprensa tem que ajudar. A população precisa dar palpite em tudo, inclusive na terceirização de serviços, como ocorre aqui em Belém e resultou nessa paralisação [dos Hospitais de Pronto Socorros, em novembro deste ano). A participação social deve ser desde o início dos processos, porque é claro que no fim é trágico. Quando ficou doente é porque não houve saúde, algo falhou. E cuidar do fim será sempre mais caro.
P: E outras indústrias, como a farmacêutica, também têm interesse em apresentar cuidados apenas paliativos...
R: Claro. Hoje se faz pesquisa para medicamentos que agem sobre comportamento, sobre as emoções. Não se têm priorizado as grandes questões. Apesar de ser voltado à saúde, não deixa de ser um produto que visa lucro, tem propaganda. Eles vão criar necessidades. A gente acaba precisando de um medicamento novo, de uma cirurgia. E isso é algo sem fim. Essas demandas das sociedades capitalistas são infinitas. O governo que investir só aí está completamente perdido.
P: E quando o governo falha? Vemos muito o Ministério Público agindo em nome de denúncias da sociedade cobrando do Judiciário, que cobra então do Executivo. O que acontece quando o governo não cumpre o seu papel?
R: Isso foi um grande progresso da Constituição brasileira. Na hora em que criamos o estado democrático de direito, se alargou muito as competências do Ministério Público, como um verdadeiro advogado da sociedade. Hoje ele tem sido muitíssimo útil. Hoje existe uma polêmica em torno na chamada “judicialização da saúde”, na qual os juízes estariam fazendo as políticas de saúde. Eu tenho dúvidas a respeito. Veja o caso dos portadores de HIV. Hoje, nós temos um programa que é exemplo pro mundo, mas isso começou pela judicilização. O paciente foi buscar na justiça o direito de ter o remédio. O governo brasileiro começou a ser condenado uma, duas, três vezes e viu que ficaria mais barato fazer a política de distribuição do medicamento. Então, foi algo extremamente útil, como continua sendo. Entretanto, acho também que o próprio MP está com o foco muito na doença, exigindo apenas o urgente e esquece das políticas anteriores que também são garantidas aos cidadãos, como prevenção, promoção e educação da saúde. Eu não queria que ele deixasse de fazer o que está fazendo, mas que dividisse o tempo dele também com prevenção, já que a Constituição também prevê isso.
P: Como a sociedade deve atuar então?
R: São dois pontos. A sociedade precisa fazer o direito, para onde eu quero que vá os recursos, e controlar a execução do direito. Porque é aí que se perde ideia de justiça, porque o direito vira só aplicação da lei. Se a gente não faz o que povo quer, a gente não tá fazendo justiça.
P: E os planos de saúde privados? A justiça também tem atuado na garantia de exames, cirurgias negadas por empresas. Como foi funciona a lei para esse tipo de contrato privado?
R: Eu tenho a impressão de que conseguimos impregnar o judiciário com a ideia de que saúde é um direito fundamental. Ele está trabalhando melhor com o cuidado da doença e entendeu que saúde é um direito de todos. E tem também interpretado a relação de consumo à luz da Constituição. Para mim, o judiciário tem ido além, aberto os contratos e caminhado em direção ao direito fundamental.
P: Belém vive uma grande polêmica em relação à greve de médicos de uma cooperativa que realizam os atendimentos nos hospitais municipais de pronto-socorro. A justiça determinou que eles voltassem imediatamente e a secretaria teria um mês para pagá-los. Quando de se trata em greve na saúde, a justiça é mais rígida?
R: Muita gente pode não gostar da minha resposta. Mas, honestamente, tenho muita dificuldade em aceitar que greve seja um instrumento legítimo de reivindicação do serviço público. Porque a ideia base do serviço público é que ele é indispensável para a sociedade. Senão, não deveria ser público. Se ele é indispensável, não há mais o que dizer. Eu entendo o trabalhador, mas acho que ele precisa encontrar um meio mais eficiente de protestar. Com a greve ele não está punindo o governo, está punindo o povo. Quantas vezes você vê greve nas universidades e o Estado nem se preocupa. Ou seja, há um desvirtuamento, porque acabamos não tendo disciplina. Hoje, a greve no serviço público é amparada por uma decisão do STF, que diz que, enquanto não houve a lei de greve do serviço público, aplica-se a lei do serviço privado. E esse caso aqui em Belém mostra que isso é muito grave. As pessoas estão morrendo pela decisão de outros.
P: Sobre o SUS, então, será que apenas cumpri-lo como deveria já não seria um grande avanço?
R: Não tenho a menor dúvida. Se a gente conseguisse cumprir o que está previsto na Constituição, todo mundo ia querer viver no Brasil por conta do sistema de saúde, porque ele tem toda a estrutura prevista para isso. E eu acho que ele é real. Não considero um sonho ou utopia, porque ele não diz que você tem que ter um hospital de primeira linha em todos os lugares, mas sim o que a população dali precisa. É triste se a gente não for capaz de efetivar de vez o SUS, porque ele tem muitas vantagens. Ele melhora o nosso federalismo. Está definido que cuidar da saúde é obrigação dos três níveis, união, estado e município. O SUS prevê que os três dividam responsabilidade, ajam em conjunto. Quer coisa melhor para resolver o problema da população do que os três níveis de governo participando junto em prol do mesmo caso? O instrumento já existe, a concepção já existe, falta só ela impregnar todos os atores, convencer a sociedade de que é possível fazer um SUS eficiente.
Mestre e doutora em saúde pública pela Universidade de São Paulo e pós-doutorada em direito médico e saúde pública pela Université de Paris XII (França) e Columbia University (EUA), Sueli Dallari atualmente é professora titular da Universidade de São Paulo.
Confira entrevista cedida recentemente e com exclusividade ao DIÁRIO:
P: Como a Constituição brasileira trata o direito à saúde?
R: Uma coisa que aconteceu no mundo, no século XX, foi a percepção de que o direito tinha se afastado da justiça. Então se perguntou, quem sabe o que é justo? O povo, claro. Então, temos que ter o povo participando da ideia. Aí se cria a ideia do estado democrático de direito, que é o que nós somos, mas não somos sozinhos. Todos os estados contemporâneos que reformaram suas constituições são estados democráticos de direito, porque há a percepção de que temos que fazer algo mais justo. Essa introdução toda é para dizer que o direito da saúde ficou uma explicação prática muito boa do que está escrito na Constituição brasileira, onde se lê “saúde é um direito de todos que deve ser garantido pelo estado com políticas econômicas e sociais que tenham o objetivo de reduzir ou eliminar os riscos de doença e de cuidar da saúde”. E ainda continua: “Todas as ações de saúde têm que contar com a participação do povo”. Essa é a diferença fundamental do que ocorreu em relação à saúde na Constituição. Ela é vista com um conceito positivo. O direito à saúde está muito bem definido como algo positivo que exige que o povo diga o que é saúde. Ninguém pode fazer isso do seu gabinete. É preciso que quem vive a realidade explique o que é saúde. A definição de saúde dá trabalho e tem que ser feita na comunidade, com a participação popular. E a constituição prevê tudo isso.
P: E o direito sanitário, seria exatamente o quê?
R: O direito sanitário é o direito que cuida da organização social, que se interessa pela saúde. Ele cuida das normas legais feitas pelo parlamento e pela administração, assim como das normas éticas, das questões de acesso à saúde - reconhecido como direito da humanidade, formalizado em 1948, mas sempre reconhecido como fundamental para vida humana.
P: E o que cabe ao poder público? Quais ações ele deve provir à sociedade?
R: A primeira, em termos de urgência hoje, é ouvir a sociedade e dar meios para que ela possa participar. Não adianta apenas ouvir. Por exemplo, você quer que seja construído um hospital em determinada região. Aí se discute, há acordos, análises até que um parlamentar faz uma proposta para que o recurso seja incluído no orçamento do município. E aí não acontece nada. Fica por isso mesmo. Porque a gente não consegue entender o orçamento. O prefeito vai dizer que não tinha dinheiro, mas como não tinha se constava no orçamento? Essas coisas a gente precisa tornar mais transparentes, senão o povo não vai cobrar. A peça chamada orçamento precisa ser mais discutida, o tempo todo, em todo lugar. Hoje a lei obriga que existam conselhos de saúde, mas esses conselhos têm que ter informação também, a imprensa tem que ajudar. A população precisa dar palpite em tudo, inclusive na terceirização de serviços, como ocorre aqui em Belém e resultou nessa paralisação [dos Hospitais de Pronto Socorros, em novembro deste ano). A participação social deve ser desde o início dos processos, porque é claro que no fim é trágico. Quando ficou doente é porque não houve saúde, algo falhou. E cuidar do fim será sempre mais caro.
P: E outras indústrias, como a farmacêutica, também têm interesse em apresentar cuidados apenas paliativos...
R: Claro. Hoje se faz pesquisa para medicamentos que agem sobre comportamento, sobre as emoções. Não se têm priorizado as grandes questões. Apesar de ser voltado à saúde, não deixa de ser um produto que visa lucro, tem propaganda. Eles vão criar necessidades. A gente acaba precisando de um medicamento novo, de uma cirurgia. E isso é algo sem fim. Essas demandas das sociedades capitalistas são infinitas. O governo que investir só aí está completamente perdido.
P: E quando o governo falha? Vemos muito o Ministério Público agindo em nome de denúncias da sociedade cobrando do Judiciário, que cobra então do Executivo. O que acontece quando o governo não cumpre o seu papel?
R: Isso foi um grande progresso da Constituição brasileira. Na hora em que criamos o estado democrático de direito, se alargou muito as competências do Ministério Público, como um verdadeiro advogado da sociedade. Hoje ele tem sido muitíssimo útil. Hoje existe uma polêmica em torno na chamada “judicialização da saúde”, na qual os juízes estariam fazendo as políticas de saúde. Eu tenho dúvidas a respeito. Veja o caso dos portadores de HIV. Hoje, nós temos um programa que é exemplo pro mundo, mas isso começou pela judicilização. O paciente foi buscar na justiça o direito de ter o remédio. O governo brasileiro começou a ser condenado uma, duas, três vezes e viu que ficaria mais barato fazer a política de distribuição do medicamento. Então, foi algo extremamente útil, como continua sendo. Entretanto, acho também que o próprio MP está com o foco muito na doença, exigindo apenas o urgente e esquece das políticas anteriores que também são garantidas aos cidadãos, como prevenção, promoção e educação da saúde. Eu não queria que ele deixasse de fazer o que está fazendo, mas que dividisse o tempo dele também com prevenção, já que a Constituição também prevê isso.
P: Como a sociedade deve atuar então?
R: São dois pontos. A sociedade precisa fazer o direito, para onde eu quero que vá os recursos, e controlar a execução do direito. Porque é aí que se perde ideia de justiça, porque o direito vira só aplicação da lei. Se a gente não faz o que povo quer, a gente não tá fazendo justiça.
P: E os planos de saúde privados? A justiça também tem atuado na garantia de exames, cirurgias negadas por empresas. Como foi funciona a lei para esse tipo de contrato privado?
R: Eu tenho a impressão de que conseguimos impregnar o judiciário com a ideia de que saúde é um direito fundamental. Ele está trabalhando melhor com o cuidado da doença e entendeu que saúde é um direito de todos. E tem também interpretado a relação de consumo à luz da Constituição. Para mim, o judiciário tem ido além, aberto os contratos e caminhado em direção ao direito fundamental.
P: Belém vive uma grande polêmica em relação à greve de médicos de uma cooperativa que realizam os atendimentos nos hospitais municipais de pronto-socorro. A justiça determinou que eles voltassem imediatamente e a secretaria teria um mês para pagá-los. Quando de se trata em greve na saúde, a justiça é mais rígida?
R: Muita gente pode não gostar da minha resposta. Mas, honestamente, tenho muita dificuldade em aceitar que greve seja um instrumento legítimo de reivindicação do serviço público. Porque a ideia base do serviço público é que ele é indispensável para a sociedade. Senão, não deveria ser público. Se ele é indispensável, não há mais o que dizer. Eu entendo o trabalhador, mas acho que ele precisa encontrar um meio mais eficiente de protestar. Com a greve ele não está punindo o governo, está punindo o povo. Quantas vezes você vê greve nas universidades e o Estado nem se preocupa. Ou seja, há um desvirtuamento, porque acabamos não tendo disciplina. Hoje, a greve no serviço público é amparada por uma decisão do STF, que diz que, enquanto não houve a lei de greve do serviço público, aplica-se a lei do serviço privado. E esse caso aqui em Belém mostra que isso é muito grave. As pessoas estão morrendo pela decisão de outros.
P: Sobre o SUS, então, será que apenas cumpri-lo como deveria já não seria um grande avanço?
R: Não tenho a menor dúvida. Se a gente conseguisse cumprir o que está previsto na Constituição, todo mundo ia querer viver no Brasil por conta do sistema de saúde, porque ele tem toda a estrutura prevista para isso. E eu acho que ele é real. Não considero um sonho ou utopia, porque ele não diz que você tem que ter um hospital de primeira linha em todos os lugares, mas sim o que a população dali precisa. É triste se a gente não for capaz de efetivar de vez o SUS, porque ele tem muitas vantagens. Ele melhora o nosso federalismo. Está definido que cuidar da saúde é obrigação dos três níveis, união, estado e município. O SUS prevê que os três dividam responsabilidade, ajam em conjunto. Quer coisa melhor para resolver o problema da população do que os três níveis de governo participando junto em prol do mesmo caso? O instrumento já existe, a concepção já existe, falta só ela impregnar todos os atores, convencer a sociedade de que é possível fazer um SUS eficiente.
(Diário do Pará)
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